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MINHAS LEITURAS 2 - A Invenção da América

Atualizado: 19 de nov. de 2024

A invenção da América

Dezoito livros para conhecer o lugar onde eu vivo. Ou, para ser mais preciso, para conhecê-lo um pouco melhor. Eis a tarefa na qual me coloquei. E o plano é compartilhar por aqui um pouco das impressões e reflexões que tive ao longo dessas leituras. A primeira delas foi o livro de Alain de Botton, A Arte de Viajar. Dando prosseguimento aos meus estudos, desta vez escolhi a obra de Edmundo O’Gorman, 'A Invenção da América', publicada originalmente em 1958 e lançada no Brasil pela Editora Unesp em 1992. Considerei que esta obra seria um bom ponto de partida antes de dar início a leitura de ‘1516: 500 anos da chegada dos Espanhóis em Santa Catarina’.


Importante assinalar que não sou historiador, mas um mero apreciador desta disciplina. Dito isto, minha resenha não pretende ser uma análise acurada dos conceitos e propostas apresentadas pelo autor, mas meramente uma descrição do porque escolhi esta obra, o que aprendi com ela e como contribui para meu trabalho como artista. Por fim, espero que esta resenha possa motivar você a ler a obra e tirar suas próprias conclusões. Este é, sem dúvidas, meu maior objetivo.


A invenção da América


POR QUE LER 'A INVENÇÃO DA AMÉRICA'?

Dentre os dezoito livros que pretendo ler, A Invenção da América — juntamente com ‘Nações e Nacionalismos’, ‘A Invenção das Tradições’ e ‘Comunidades Imaginadas’ — se encontra entre os que selecionei para ter uma melhor compreensão sobre como nossas concepções sobre a realidade são "inventadas". Como fotógrafo de paisagens e documental, estou particularmente interessado sobre como se formam nossas concepções sobre o território e sobre a cultura.


Tal interesse não é mera curiosidade. A maneira como percebemos o mundo e a realidade guiam nossas ações nesse mundo — e as ideias que têm orientado nossas ações nesse planeta tem comprometido o bem-estar das pessoas e a agir de maneira pretensiosa em relação à natureza. Além disso, as classes dominantes que governam e dirigem a economia de nossas cidades e estados veem o território não como um espaço onde se vive, mas espaço onde se lucra. É preciso que brote um novo modo de pensar nossas relações com o espaço em que vivemos e com o mundo, um modelo na qual as pessoas possam exercer plenamente suas existências. Acredito que a arte tem papel decisivo na construção de uma nova sociabilidade ao promover uma nova maneira de vermos o mundo à nossa volta. Para isso, o artista precisa adotar um olhar crítico sobre seu mundo, entendendo que nossas ideias sobre o mundo são construções humanas, e não fruto de observações puramente objetivas. É por isso que escolhi ler este livro.


Apesar de estar próximo de completar seus 70 anos, ainda há algo para se aprender com este livro. Confesso que encontrei dificuldades para classificá-lo, pois ‘A Invenção da América’ é uma obra ao mesmo tempo de história e sobre teoria da história. Mais do que listar uma série de eventos em ordem cronológica, O’Gormam evidencia para seus leitores a “manufatura” da história — seus processos de criação. De acordo com o autor:


gostaria que se visse neste livro algo como uma pesquisa da fisiologia da história, da história entendida não como um acontecimento que se “passa” com o homem [...], mas como algo que o vai constituindo em seu ser espiritual; a história, portanto, entendida como uma modalidade do que chamamos vida. É que este trabalho, não obstante suas falhas, é, definitivamente, uma análise do modus operandis e do modus vivendi da história  p.29

A invenção da América


CONTEÚDO

O’Gorman divide sua obra em quatro partes. Na primeira, analisa como, ao longo da história, os historiadores atribuíram a Cristóvão Colombo o descobrimento da América, apesar das evidências de que Colombo nunca se deu conta do que tinha descoberto. Colombo viveu convicto de que havia chegado ao litoral da Ásia, e morreu antes da existência da IDEIA de América - por este motivo, não pôde descobri-la. Se os historiadores continuaram a atribuir a Colombo essa descoberta, mesmo com as evidências apontando que ele morreu sem nunca se dar conta do seu feito, isso se deve ao fato de estes historiadores verem a América como algo que sempre existiu, e que o mero contato com este território bastasse para descobri-la. É preciso, então, entender o horizonte cultural no qual surge a ideia de América.


Na segunda parte, O’Gormam faz uma descrição das concepções de mundo da Europa medieval. Qual o formato da terra? Quais eram suas dimensões? Quanto do mundo era coberto por água e qual a proporção da chamada “Ilha da Terra” (o território formado por Europa, África e Ásia)? Se, navegando oceano adentro, se encontrasse terras desconhecidas, estas terras estariam ocupadas ou desabitadas? Se estivessem habitadas, seus habitantes seriam humanos ou não humanos? Essas perguntas podem não ter grande importância para nós, mas tinham grande significado para a cultura medieval e poderiam ter grande consequência sobre suas percepções de mundo. Importante lembrar que a existência de pessoas habitando terras separadas da “Ilha da Terra” colocava em xeque as verdades da Bíblia Sagrada e, consequentemente, toda a sociedade erigida sobre ela. É sobre este horizonte cultural que Colombo realiza suas expedições marítimas e que a ideia de América irá se originar. E é esse horizonte cultural que O’Gorman apresenta nesta segunda parte de seu livro.


A invenção da América

Na terceira parte - a principal e mais extensa - O’Gorman descreve como a ideia de América surgiu na mentalidade europeia medieval - mentalidade que era fortemente influenciada pela fé cristã e que por isso não podia conceber a existência de um novo mundo que fosse habitado. Por meio da análise de mapas, diários e documentos da época, mais do que se limitar a narrar eventos em ordem cronológica, o autor nos apresenta a mentalidade de Colombo ao longo de suas quatro expedições ao território que ele acreditava ser o leste asiático. O’Gorman também apresenta as concepções de Américo Vespúcio, navegador que, pela primeira vez, cogitou a ideia de que os territórios encontrados não pertencessem à Ásia, mas que faziam parte de um território novo e totalmente separado do então “Velho Mundo”. A existência desse “Novo Mundo” precisou ser “acomodada” dentro das concepções de mundo medieval. A ideia de América foi, assim, originada por europeus, para se acomodar às suas visões de mundo e se adequar aos seus objetivos e propósitos. Para O’Gorman, a invenção da América é “o resultado de um complexo processo ideológico que acabou, através de uma série de tentativas e hipóteses, por atribuir-lhes um sentido peculiar e próprio: o sentido de ser da “quarta parte” do mundo” p.179.


A quarta e última parte do livro é dedicada ao estudo da “estrutura do ser da América e o sentido da história americana”. Em linhas gerais, com o surgimento da América, a Europa cristã deixou de ver o mundo como algo feito e dado por Deus, mas algo que o homem conquista e faz. "Reclamou-se pela primeira vez a soberania do homem sobre a realidade universal " p.185. Em relação as pessoas que já habitavam o território, buscou-se provar que eles também descendiam de Adão e Eva e, sendo assim, podiam se beneficiar do sacrifício de Cristo. Porém, por terem permanecido à margem do ensinamento do Evangelho, essas pessoas não haviam podido realizar a "verdadeira" humanidade. As civilizações erguidas por estas sociedades foi vista como carentes de significado histórico. A América foi vista então como um novo mundo, no sentido de uma ampliação não previsível da velha casa. A partir daí, desenvolveu-se dois caminhos: o da imitação e o da originalidade. No primeiro, buscou-se incorporar os povos indígenas, e forçá-los a se encaixar no modelo europeu de civilização - de modo geral, foi a postura adotada na América Latina. No segundo, implementado na América Anglo-Saxônica, transportou-se as crenças, sistemas, instituições e costumes europeus para a América, mas ali os indígenas foram postos à margem, abandonados a sua própria sorte, vistos como homens sem redenção possível e que Deus havia esquecido. Para esses colonos europeus, a América era o local em que podiam exercer plenamente suas liberdades e fazer o seu mundo, uma segunda nova Europa - nova não como réplica, mas "como fruto do desenvolvimento da potencialidade do pensamento moderno" p.206



CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Invenção da América é uma obra relativamente densa, que não se limita a narrar os eventos em ordem cronológica. O livro parece ser escrito principalmente para outros historiadores, o que pode tornar a leitura difícil para não historiadores ou leitores não habituados com esse gênero textual. O grande mérito da obra está justamente na preocupação do autor em revelar a “manufatura” da história e em investigar profundamente a mentalidade dos navegadores, governantes e intelectuais da época para, por fim, apresentar como surge a ideia de América na mentalidade europeia e como esta ideia de América continua a ditar os rumos da nossa história. A independência econômica e política de nossas nações não foi acompanhada de uma independência de pensamento.


Termino a leitura concluindo que a América não existe desde sempre. Dito de outra forma, a América não é meramente um território, mas uma ideia — uma ideia que se originou na Europa. Mas esta ideia de América não apenas precisou ajustar-se às antigas concepções de mundo dos europeus; ao surgir, a ideia de América acaba por alterar também essas antigas concepções. Com o surgimento da América, modifica-se também a ideia de Europa e sua razão de existir no mundo. 


Embora a obra não trate sobre o assunto, pode-se concluir, também, que os povos originários desse continente certamente tinham suas próprias ideias e concepções sobre o território que habitavam, ideias que nada tinham a ver com ideia de América. Como esses povos concebiam seus territórios é uma questão que merece nosso interesse e que certamente motivará novas leituras.


Entendida como uma “nova casa” para o Velho Mundo, a América foi vista como território a ser ocupado e educado sob os paradigmas europeus. Os homens que governam nosso território foram educados sob esses valores, e nossa sociedade foi erigida sobre essas concepções. Para o Brasil e a América Latina, a consequência desse processo é uma classe dominante que não respeita o território em que RESIDEM (pois eles não vivem este território; aqui eles residem e fazem negócios, mas suas vidas são vividas em outros cantos do mundo: Miami, Los Angeles, Nova York, Paris, Londres, Berlin, Roma, Veneza, Zurique, Dubai) , se esforçando para transformar essa terra em uma nova Europa, numa tentativa sempre fracassada de emular suas instituições e sua cultura. A consequência é que não só os ricos, mas grande parte da classe média e da classe trabalhadora (em especial os jovens) não gosta de viver onde vive, seja por não se identificar com o território, seja por não se identificar com a cultura local.


Estou plenamente convencido de que nenhum ser vivo - seja humano ou não humano - é capaz de perceber o mundo real como ele verdadeiramente é. Extremamente complexa, a realidade realmente real foge completamente do nosso entendimento. Da realidade, só temos impressões e ideias superficiais. De todo modo, nossas ideias sobre a realidade são tudo o que temos, e são elas que orientam nossa maneira de agir e experimentar no mundo. A leitura de ‘A Invenção da América’ contribuiu para a minha compreensão de como nossas ideias sobre a realidade moldam a maneira como percebemos a realidade e o modo como nos relacionamos com o mundo e as pessoas à nossa volta. O exemplo de Colombo e sua inabalável crença de ter chegado ao leste asiático é uma perfeita ilustração do que acabo de dizer.


Estou convicto de que, como artistas, exercemos um papel considerável na construção dessas percepções e ideias sobre a realidade. O colonialismo não se dá apenas pela dominação militar e econômica, mas também pela dominação cultural. É preciso que o artista compreenda isto e tenha noção do poder que exerce na comunidade na qual está inserido. O artista tem o poder de mudar a maneira como as pessoas pensam e experimentam a realidade. A atividade artística se revela uma poderosa ferramenta em prol da construção de uma outra sociabilidade, e de um outro modo de ver - e viver - o mundo.


a ideia que o homem forma a respeito de seu mundo depende da ideia que o homem tenha de si mesmo e que, portanto, o concebe à sua imagem e semelhança. [...] Desde que o homem se imagina como algo feito para sempre, de acordo com um modelo prévio e inalterável, terá que imaginar que seu mundo tem a mesma inabalável estrutura ou natureza. Mas se o homem se imagina, não como definitivamente feito mas como possibilidade de o ser, o universo em que se encontra não lhe parecerá como limite intransponível e realidade alheia, mas como um campo infinito de conquista para fazer seu mundo, como um produto de seu esforço, sua técnica e de sua imaginação. [...] Será, pois, um mundo em vias de se fazer, será sempre um mundo novo.  Edmundo O'Gorman, A Invenção da América

A invenção da América

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